domingo, 15 de novembro de 2015

A profissão do professor é cheia de altos e baixos. Bem, nas atuais condições de (des) valorização pelas quais a Educação passa, é possível dizer que são mais baixos do que altos. Entretanto, ainda é possível tirar bons momentos. Eu gosto de ser professora porque todos os dias algo novo acontece. A macro-rotina é a mesma: acordar cedo, pegar trânsito, carregar uma mochila pesada cheia de livros, entrar em aula, pedir silêncio, fazer chamada, pedir silêncio explicar conteúdo, pedir silêncio, dar exercícios, pedir silêncio. A questão é que todo dia alguma coisa diferente acontece, alguém fala algo muito engraçado, ou muito tosco digno de parar a aula pra debater aquele assunto, e por aí vai.
Esse ano eu tenho um  aluno de 8 anos que é muito particular. Sim, uma criança de 8 anos é capaz de me causar arrepios todas as segundas e risadas fantásticas todas as quartas, ou vice-versa. E ele merece uma crônica especial pelo simples fato de me desafiar todas as segundas e quartas enquanto ser humano e enquanto professora.
Em anos de profissão, ele foi (é, será?) a única criança que eu tenho vontade de sufocar com um travesseiro na cabeça e ao mesmo tempo ele é o único que surge com sacadas tão geniais que salvariam a cabeça dele em caso de emergência.
Uma vez ele tentou me desconcertar na frente de 3 turmas. Estávamos todos assistindo a um vídeo e eu estava conduzindo a aula. De repente ele levantou e gritou:
- I hate teacher Bianca!!!!!!!!!
Todos ficamos olhando pra ele sem entender muito bem o que se passava. Confesso que nem eu mesma sabia o que fazer, pois me faltava experiência, traquejo e outras coisas mais. Juntei coragem contra o moleque desafiador e perguntei:
- Pronto? Já disse o que queria? Precisa acrescentar mais alguma coisa?
Ai ele ficou sem graça e disse que não. Sentou no seu cantinho, bem amuado e não incomodou mais. Acho que ali ele queria deixar bem claro que não tava nem um pouco satisfeito com a Teacher Bianca e parecia que ninguém mais estava entendendo, então ele precisava contar de alguma forma.
Outra dia, ele me surpreendeu com um desenho. A atividade consistia em desenhar roupinhas nos bonequinhos do livro. Além das roupinhas “normais” ele fez uma sombra na região da boca da bonequinha Sally. Eu perguntei se aquilo era uma barba, não criminalizando se fosse, mas já imaginando que ele transformaria a personagem-menina em menino pela falta de representatividade. Qual não foi minha surpresa quando ele disse que aquela sombra era na verdade uma máscara de ninja! Achei muito bom: empoderou uma personagem feminina, sem  exaltar as qualidades sexuais e etc. É claro que ele é apenas uma criança, mas tanto melhor. Como disse, quase não tem representatividade feminina no universo dos quadrinhos, dos filmes, etc.. Até mesmo as meninas desenham personagens masculinos sempre que eu peço algo diferente. Então, o fato dele ter feito uma personagem ninja foi surpreendente.
Semana passada, ele chegou com conjuntivite na sala de aula. Eu olhei pra ele e fiquei pensando: SÉRIO? É SÉRIO QUE ATÉ COM CONJUNTIVITE VOCÊ VAI VIR PRA AULA? Sou capaz até de imaginar que ele foi pra aula com conjuntivite pra me passar, porque diferentemente das outras aulas, ele ficava me chamando muito na mesa dele, querendo mostrar os desenhos e fazer perguntas. Eu me aviso constantemente: toda atenção é pouca para com esse garoto.
E assim correu um ano de convívio com esse menino. Toda segunda e quarta ele vem com alguma coisa nova. Às vezes é genial, às vezes muito agressivo, nunca meio termo, nunca no nível de uma criança normal. Todo domingo e terça eu me pego pensando: o que será que ele vai fazer amanhã? 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Ela acordou com aquela sensação de dúvida existencial do tipo caso-ou-compro-uma-bicicleta. Levantou-se e, metodicamente, como fazia todas as manhãs, arrumou a cama, tomou um banho, trocou de roupa, tomou café da manhã lendo o jornal local, já esperando as mesmas notícias de sempre. Naquele dia, porém, quase se engasgou com seu café. Leu no jornal que a banda Pearl Jam chegaria à cidade para um show. Sua banda favorita. De um salto, jogou o jornal para um lado, o pão com manteiga pro outro e resolveu, como se faz no dia 31 de dezembro, que se casaria com Eddie Vedder. Pegou sua bicicleta e rumou pro único hotel da cidade, onde, certamente a banda estaria hospedada.
O engraçado das resoluções que tomamos, seja na véspera do Ano Novo ou simplesmente quando estamos de saco cheio das conformações que nossa vida vai criando quase que sozinha é que somente fazer a resolução não faz com que as coisas mudem como num passe de mágica. As academias enchem e esvaziam porque não tem nada de mágico em cuidar da forma física. Parar de fumar? Voltar a estudar? Viajar mais? Fazer uma poupança? Casar com o Eddie Vedder? É tudo tão complexo e precisa de tantos planos que, quando nos damos conta da (im) possibilidade, apenas desistimos. E nos frustramos.
Sem se dar conta que não tinha um plano para entrar no hotel, que não tinha ensaiado seu discurso para convencer o Eddie de que eles deveriam se casar e, principalmente, sem perceber a rapidez com que decidira sua resolução, ela seguiu pro hotel, pedalando e cantarolando “oh where oh where can my baby be?”.
Ao chegar ao hotel, ela observou o terreno. Muitas câmeras e pessoas histéricas gritando o quanto amavam a banda, esperando que alguém surgisse na janela e desse um tchauzinho. Muitos seguranças bloqueavam a porta principal. Um cenário de guerra, com vários inimigos e obstáculos a impedindo de conquistar seu objetivo. Grande jogadora de War que era, rapidamente pensou nas possibilidades de entrar no território almejado sem danos. Logo uma porta de entrada surgiu. Era a porta dos fundos, por onde saíam e entravam carregamentos de comida e de roupas para o hotel. Sem pestanejar foi lá. E entrou sem ser vista. Como se fosse invisível. Para garantir sua invisibilidade, se vestiu com um uniforme de camareira que encontrou em um dos sacos daquele lugar e seguiu em frente. Já vislumbrando como seria encontrar com o Eddie e conversar sobre tantas coisas até que ele se apaixonasse perdidamente por ela. No meio do caminho encontrou um carrinho com um espumante e achou que seria de bom tom chegar ao quarto com um agradinho. Que quarto? Não sabia onde estava hospedado. Mas isso não foi um problema. Se ela conseguiu driblar uma multidão ensandecida lá fora, achar o quarto seria fácil. E foi.
Chegando lá, bateu solenemente. Quando o próprio Eddie abriu a porta ela sorriu e logo em seguida desmaiou. Essa é a segunda coisa engraçada sobre resoluções que tomamos. Quando conseguimos superar as dificuldades que surgem magicamente no momento em que definimos que é aquilo que queremos para nossa vida, nem sempre estamos fortes o suficiente para aguentar as cargas emocionais. Superar obstáculos é muito bom. Superar obstáculos em direção a uma resolução praticamente impossível é fenomenal e causa esse tipo de reação. Tenho a ligeira impressão de que isso acontece porque, até o último minuto, somos incapazes de acreditar em nós mesmos e na nossa capacidade de vencer ao menos uma vez na vida. Ela viu, veio, venceu e não agüentou a emoção. O que foi muito bom pro encaminhamento da resolução: assustado com a moça que caiu a sua frente, Eddie a pegou nos braços, levou pra dentro do quarto, colocou em sua própria cama e abanou com um folder do show para que ela recobrasse consciência.
Já acordada, ela sentou e sentindo-se muito envergonhada começou a se desculpar. Eddie disse que não havia problema e que estava tudo certo, oferecendo-lhe um copo d’água. Ela contou que era uma grande fã da banda e que havia driblado seguranças e fãs só para estar ali. Mas não revelou a verdadeira motivação. O casamento. Que ideia maluca! Ela nunca quis se casar, porque justo agora haveria de querer? Achou melhor omitir aquela parte. Depois de alguns minutos de conversa, um CD autografado, uma selfie tirada com smartphone, ingressos para o show e uma palheta, resolveu que era hora de ir embora e deixar Eddie seguir sua vida. Despediu-se de sua resolução como quem se despede de um amigo que vai virar um ermitão no Tibet. Desceu os andares e voltou pra casa relembrando todo o esforço que havia feito aquele dia.

E essa é a terceira coisa engraçada sobre as resoluções: quando não desistimos de primeira e superamos vários obstáculos para, no fim, perceber que não era nada daquilo que se queria, a sensação que fica não é a de vazio, como seria em caso de desistência antes da tentativa. Na realidade, fica uma sensação de dever cumprido e de autoconhecimento, o que vai na contramão daquele mantra “a-vida-é-curta-para-cometer-erros”. Ninguém está livre de cometer erros na vida e são eles que nos fazem crescer. Acordar sem saber o que fazer da vida e resolver, de supetão, casar com o Eddie Vedder não é um erro. É uma possibilidade de caminho entre tantos que todos os dias surgem a nossa frente. Basta escolher em qual seguir. Basta superar os obstáculos que vão surgindo (o que não é fácil). Basta voltar se quiser desistir e tomar o outro caminho. As palhetas, selfies e os autógrafos que ficam, ou que deixamos, na medida em que caminhamos são provas de que temos histórias pra contar.

(Após show do Pearl Jam, em Porto Alegre dia 11/11/2015 - um sonho realizado, ainda que não tenha nem chegado perto do Eddie Vedder)