segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O assalto

Aqueles eram tempos muito perigosos. Todos os dias alguém contava de um conhecido que havia sido assaltado na parada de ônibus, ou chegando em casa, de noite ou de dia. Alguns já até tinham perdido a conta de quantas vezes haviam sido assaltados. Ela, por sua vez, aos 31 anos de idade, contava 31 anos sem ter sido assaltada. Sorte? Corpo fechado? Cara de quem não tinha nada de valor para ser levado? Não se sabe. Certo é que o cerco estava se fechando. As histórias de assalto já a espreitavam, como quem diz "a sua vez está chegando". A proximidade era tanta que um dos vizinhos chegou a ser assaltado na porta do prédio minutos depois dela ter entrado.
Conformada e preparada para reagir bem, com tranquilidade, quando o assaltante enfim chegasse, ela levantava todos os dias para ir trabalhar e voltava todas as noites, contando mais um dia de alívio ou menos um dia de espera. Sabia que a cidade não a deixaria contar para os seus netos que, enquanto todo mundo já tinha sido assaltado pelo menos 80 vezes, ela nunca tinha passado por essa experiência.
Uma bela noite de início de setembro, voltando para, percebeu que estava sendo seguida. Pensou consigo mesma que enfim, o dia havia chegado e disposta a terminar com a aquilo logo de uma vez, se virou e disse:
- Olha, aqui na minha mochila eu só tenho meu velho laptop que talvez valha alguma coisa. Eu já vou tirando ele aqui pra você, tá? O resto é só livros, redações pra corrigir... Sabe como é, né? Sou professora.
Agachou no chão e começou a fuçar a mochila para tirar o laptop.
Sem entender e até um pouco frustrado por não ter conseguido surpreender sua vítima, o assaltante disse:
- Tudo bem! Vai passando o computador.
- Ok! Só um instantinho. Segura essas chamadas aqui pra mim. Não posso amassá-las.
- A senhora é professora de português?
- Sim.
-Legal! Era minha matéria favorita na escola... A senhora é professora no Estado?
- Sim - disse um tanto impaciente. Não imaginou que seria assaltada e ainda por cima teria que bater papo.
- Tá uma coisa de louco a situação de vocês, né? Esse governador tá de brincadeira! Não paga direito os "professor". Educação tinha que ser mais respeitada, num acha?
Ela levanta a cabeça sem querer acreditar que aquele tipo de conversa estava se passando no seu primeiro assalto e disse:
- É verdade! A Educação tinha que ser mais valorizada! Não só pra quem trabalha com ela, mas para que quem a recebe tenha mais possibilidades de não precisar fazer como você está fazendo para sobreviver.
O assaltante fez um longo "hmmmm". Pensou um pouco e terminou dizendo:
- Ô, sora! Não quero levar nada seu, não! Pode ficar com o computador! Depois não vou conseguir dormir sabendo que roubei uma pessoa que já tá sendo muito roubada pelo governo... É isso aí. Fui!
Devolveu as chamadas, saiu correndo e lá do outro lado da rua gritou:
-Boa sorte!
A professora respondeu baixinho
- Pra você também...
Queria que ele pudesse ter ouvido. Ainda sem acreditar, ficou parada por uns segundos, refletindo sobre o episódio nada convencional. Ajeitou as chamadas junto aos livros e o bendito computador. Voltou pra casa feliz da vida, contabilizando mais um dia invicta. Dessa vez não por sorte ou coisa que o valha. Foi solidariedade de classe.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Solidão concreta

Naquela noite, ela fez exatamente como em todas as outras noites chatas de sua vida: comeu alguma coisa rapidamente, tomou um banho, vestiu seu pijama, deitou na cama, ligou o computador para assistir a mais um seriado enlatado e colocou seu celular, já quase sem bateria, para carregar.
Absorta entre uma mensagem e outra no whatsapp e as cenas do seriado, nem percebeu que começava a chover. Só se deu conta quando as janelas começaram a bater por causa do vento. Levantou um tanto feliz pensando que finalmente aquele calor dos infernos iria amenizar. Deitou novamente e caiu nos braços de Morfeu, profundamente.
Em seu sonho via vendavais, sapatos vermelhos, tijolos amarelos e qualquer coisa que o valha. Acordou assustada e já era dia, mas não conseguiu ver a hora por que o celular estava descarregado e não ligava mais. Tentou o interruptor e nada de luz. Geladeira, ventilador, computador: tudo desligado.
Saiu do apartamento para tentar entender a falta de luz através de algum vizinho, mas o prédio estava vazio. Resolveu sair do prédio e quando chegou na rua, seu coração disparou. A visão era de uma grande confusão, com árvores inteiras caídas, telhados e fios de alta tensão espalhados pelo chão. Nenhuma alma viva por perto. O que havia acontecido? Um vendaval? Um tornado?
A primeira reação foi tentar ligar pra alguém, mas não tinha bateria. Não podia mandar mensagem, e-mail, ligar, não tinha decorado o telefone de ninguém e  nem sequer sabia fazer sinal de fumaça. Um ponta de desespero surgiu, pois, agora sim, estava só. Sempre estivera sozinha. Morava em outro estado, longe da família, os poucos amigos que tinha estavam em outra cidade, não tinha namorado. Porém, a internet e as redes sociais amenizavam essa falta de contato físico. Agora, sem bateria, não tinha como pedir ajuda e, ao que tudo indicava, não tinha mais ninguém na cidade. Vagou por horas, com seu celular e um carregador na mão, em busca de uma tomada que funcionasse, mas não encontrou. Como escurecia e logo voltaria a chover, rumou para seu apartamento.
A solidão concreta, consumada, a deixava um pouco assustada. Sentada em sua cama, iluminada apenas pela luz de uma vela, a garota fitava a janela do quarto, completamente aberta, em busca de respostas. Queria saber desde a razão da demora em retornar a energia até os confins mais profundos de seu próprio ser angustiado repentinamente com a ideia de solidão, mesmo estando a maior parte do tempo sozinha. Não conseguia entender o que aconteceu com a cidade que estava deserta e sem energia elétrica, e por isso não conseguia se informar sobre o ocorrido. Isso contribuía para sentir medo da solidão concreta, como havia batizado esse novo momento. Chamou de concreta porque embora morasse sozinha em outro estado, solteira e longe da família, sempre estava em contato com a pequena família formada apenas pela mãe, pai e irmã. Além disso, tinha alguns amigos e a cidade em que morava atualmente era uma capital. As ruas estavam sempre cheias de pessoas caminhando rapidamente para chegar em algum lugar. A solidão dos dias normais se dava pelo fato de na maior parte do tempo estar apenas em sua própria companhia. Almoçava sozinha, falava sozinha enquanto lia, via TV ou ouvia música. Às vezes até saía à noite sozinha para bares.Entendia que estava sozinha, mas não completamente porque a qualquer momento poderia ligar pra família, ou puxar assunto com um desconhecido.A situação em que estava imersa naquele momento era diferente. Era a solidão concreta e assustadora. Era sair em busca de respostas e não encontrar quem as desse. Era depender dos meios de comunicação eletrônicos e não poder contar com eles porque não havia energia. Era muito angustiante. Chegou a cogitar uma possível morte. Era isso! Tinha morrido, seu espírito estava preso naquela dimensão e não conseguia contatar nenhum conhecido. Será que assim seu ateísmo viria abaixo?
De repente, ouviu gritos de felicidade, e o prédio vizinho, que podia ser visto pela janela, estava todo iluminado. Esticou o braço para alcançar o interruptor e fez-se a luz em seu pequeno quarto. Nem percebeu, mas ainda segurava o celular desligado e o carregador enquanto devaneava sobre, solidão, vida, morte e problemas elétricos. Conectou o celular na tomada, ligou-o e discou o número da mãe. A doce e conhecida voz do outro lado da linha fez com que um suspiro aliviado acontecesse. Era bom não estar completamente sozinha.

(Sobre o vendaval em janeiro/2016 em Porto Alegre e os dois dias sem contato com o mundo externo)